Eduardo Scolese

O dia a dia sob Bolsonaro no relato do editor de Política da Folha de S.Paulo
O dia a dia sob Bolsonaro no relato do editor de Política da Folha de S.Paulo
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Cecília Martins
revisão
Lívia Martins
capa Diogo Droschi
diagramação
Waldênia Alvarenga
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Scolese, Eduardo 1461 dias na trincheira : o dia a dia sob Bolsonaro no relato do editor de Política da Folha S.Paulo / Eduardo Scolese. -- 1. ed. -- Belo Horizonte, MG : Autêntica Editora, 2025.
Bibliografia.
ISBN 978-65-5928-605-8
1. Bolsonaro, Jair Messias, 1955- 2. Brasil - Política e governo - 20192022 3. Folha de S.Paulo (Jornal) 4. Imprensa e política - Brasil I. Título. 25-281271
CDD-320.981
Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Política e governo : Ciências políticas 320.981
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À memória de
Era um sábado. Estava de plantão no dia do meu aniversário. Pela manhã, na hora de dar tchau antes de seguir para a Redação, ouvi um pedido de meu filho: “Papai, pede pro Bolsonaro deixar você voltar pro café da tarde”.
Rafael pensava que o presidente da República fosse o meu chefe. Uma criança de 4 anos percebia na essência como o pai, jornalista da Folha de S.Paulo, havia sido capturado. A volta para casa e o fim do expediente naquele dia e em centenas de outros dependeriam justamente do mandatário do país. Estávamos em abril de 2020, no olho de um furacão de tamanho e duração desconhecidos. Uma mistura entre o início da pandemia do coronavírus, a Redação inteira em transição para o trabalho em home office e Jair Bolsonaro desgovernado em sua ânsia de ataques à imprensa e aos demais Poderes.
O resultado deste livro é um mergulho nos bastidores e nos efeitos de 1461 dias de cobertura jornalística de um presidente sem comparação com os seus antecessores mais recentes. Diferente no modo de se comunicar, mais digital e mais imprevisível, e, como apontou o jornalista Fabio Victor em Poder camuflado, protagonista de alucinados acontecimentos com ritmo frenético, fluxo caótico e ausência de lógica. No meu caso, foram quatro anos sob a sensação de apuros permanentes como editor de Política do jornal.
Tudo parecia inspirador para um livro. A Folha atravessou o período sob ataque, tratada como inimiga pelo presidente e com seu jornalismo colocado em xeque. A Redação teve de aprender a lidar com um governante engajado na destruição de políticas públicas, na ruptura com parte da sociedade, nos confrontos sistemáticos, na repetição de mentiras,
nos ataques furiosos e na adoção de uma política antivacina que parecia impensável. O jornal se abrigou em uma trincheira quando atacado e buscou seguir o eixo de um jornalismo crítico e equilibrado, mantendo intacto seu Projeto Editorial. Já os seus jornalistas mergulharam em um trabalho incessante, uniram-se para cobrar reconhecimento e flertaram com o esgotamento. Com Bolsonaro e a pandemia, a saúde mental ficou em frangalhos, assustou com um quadro amplo de estresse agudo e logo foi atacada como prioridade.
Para narrar os acontecimentos da época, além de contar com a memória ainda quente, pesquisei reportagens da Folha e de outros veículos de imprensa, consultei livros, assisti de novo a edições inteiras do Jornal Nacional, vasculhei e-mails, consultei anotações e comunicados internos, entrevistei personagens de dentro e fora do jornal e fiz um pente-fino em pelo menos 31 arquivos de WhatsApp, sendo 14 de grupos e 17 individuais. Apenas uma dessas conversas do período representou o equivalente a cem laudas quando separada para leitura. As mensagens revisitadas para a produção deste livro ajudaram como fio condutor dos capítulos e expuseram emoções vividas de 2019 a 2022.
A gestão de Bolsonaro será escrutinada em estudos e livros nas próximas décadas. O distanciamento do tempo vai ajudar em uma interpretação mais completa das ações e de seus protagonistas, não apenas do ex-presidente. Uma análise terá de ser feita sobre o papel do Congresso, com o visível pouco caso com os ataques antidemocráticos e a sede para abocanhar emendas parlamentares. Da mesma forma, o STF e seu protagonismo político em curso, em especial o modus operandi nas investigações e no julgamento de Bolsonaro e seus aliados e as medidas em nome da defesa do tribunal e do combate à desinformação. O papel geral da imprensa diante desses Poderes também valerá um mergulho à parte.
Este livro poderá ser uma peça para quem quiser montar um quebracabeça completo do período mais à frente. Por ora, fica como contribuição para entender como funciona o dia a dia da Folha e como a Redação atravessou o governo Bolsonaro. Os quatro capítulos a seguir são conduzidos por uma visão pessoal, não institucional.
Boa leitura.
São Paulo, junho de 2025.
O presidente da República fez tudo o que tinha em mãos para perseguir a imprensa que o criticava. Em um intervalo de meses, fechou a gráfica usada pela Folha, reteve no porto de Santos o papel importado para a impressão do jornal e ainda proibiu a sua circulação por tempo indeterminado.1 Enquanto crescia a oposição ao seu governo, o mandatário agiu de forma agressiva contra os seus críticos. Colocou em prática uma gestão marcada por gestos de vingança, autoritarismo e brutalidade.2 Isso incluía a imprensa. Escalou conflitos em meio a um histórico de fake news e permaneceu irredutível diante das ameaças cada vez mais robustas de impeachment contra ele. A Folha sobreviveu às investidas, e o presidente teve de passar o poder ao seu sucessor. O período resumido acima é o de 1922-1926, e o presidente, Arthur Bernardes. Semelhanças à parte, corta para 29 de outubro de 2018.
O presidente da República eleito no dia anterior fala ao vivo no principal telejornal do país. No minuto seis de uma entrevista total de doze, o homem que acabava de ser eleito com 57.797.847 de votos declara que a Folha de S.Paulo havia acabado. “Não quero que [a Folha] acabe. Mas, no que depender de mim, imprensa que se comportar dessa maneira indigna não terá recursos do governo federal.” O eleito completa: “Por si só esse jornal se acabou”.
Quem fala é Jair Messias Bolsonaro, com 63 anos de idade à época e que iniciava naquele dia o chamado período de transição de governo,
1 Pinto, 2012.
2 Vizeu, 2019.
ainda sob a gestão de Michel Temer. Assumiria o cargo de presidente em dois meses e já oferecia ali um aperitivo do que seria o seu comportamento com a imprensa nos quatro anos seguintes como morador do Palácio da Alvorada, a residência oficial da Presidência da República, às margens do lago Paranoá, em Brasília.
A fala de Bolsonaro é ao Jornal Nacional, da TV Globo, e é rebatida ao vivo por seu editor-chefe e também apresentador. William Bonner, que antes o havia questionado sobre suas recentes declarações contraditórias em torno do tema da liberdade de imprensa, improvisa uma resposta diante da ameaça à Folha feita pelo recém-eleito. Bonner esbanja frieza ao rebatê-lo: “Como editor-chefe do Jornal Nacional, eu tenho um testemunho a fazer”, diz Bonner a Bolsonaro. E prossegue: “Às vezes, eu mesmo achei que críticas que o jornal Folha de S.Paulo tenha feito ao Jornal Nacional me pareceram injustas. Isso aconteceu algumas vezes. Mas, para ser justo do lado de cá, eu preciso dizer que o jornal sempre nos abriu a possibilidade de apresentar a nossa discordância, apresentar os nossos argumentos, aquilo que nós entendíamos ser a verdade”. Bonner, que também via a Rede Globo sob cerco e ameaças do futuro presidente, conclui: “A Folha é um jornal sério, um jornal que cumpre um papel importantíssimo na democracia brasileira. É um papel que a imprensa profissional brasileira desempenha, e a Folha faz parte desse grupo da imprensa profissional brasileira”. Bolsonaro, que aparece ao lado de Bonner em uma tela dividida, apenas ouve e nada responde.
A Redação da Folha está cheia. Ela fica no quarto andar de um prédio erguido nos anos de 1950 no centro de São Paulo. Todos naquele dia trabalham intensamente no que chamamos de “rescaldos” eleitorais. É preciso correr. O jornal, como se diz no jargão da imprensa, acaba de virar notícia. Isso precisa ir ao ar o quanto antes. Às 21h59, o texto é publicado. Sob o título “Esse jornal se acabou, diz Bolsonaro ao Jornal Nacional sobre a Folha”, a reportagem ganha destaque no site. Sete minutos depois a notícia pisca nos celulares dos leitores cadastrados e passa a receber comentários em série.
Bolsonaro já havia dado sinais desse afrontamento na reta final da campanha. Uma semana antes, o então candidato pedira a seus apoiadores que participassem das eleições “ativamente”, de forma democrática e “sem mentiras, sem fake news, sem Folha de S.Paulo”. O presidente, no Rio de
Janeiro naquele dia, falava ao vivo por meio de uma chamada em vídeo aos apoiadores que estavam na avenida Paulista. Ele discursa pausadamente, toma fôlego e urra: “A Folha de S.Paulo é a maior fake news do Brasil. Vocês não terão mais verba publicitária do governo”, afirma sob gritos eufóricos dos presentes no ato em São Paulo. “Imprensa vendida, meus pêsames.”
Por esse e outros rompantes anteriores, a fala de Bolsonaro ao Jornal Nacional no dia seguinte à eleição não pega ninguém de surpresa na Redação, por mais que fosse perturbadora. A novidade naquele momento, tema principal na roda de conversa entre editores e seus chefes, é sobre a campanha espontânea em defesa do jornal que se inicia nas redes sociais logo após a ameaça de Bolsonaro. Anônimos passam a incentivar a assinatura do jornal. “Eu assinei a Folha digital nesta semana, pela primeira vez. Cancelei a Netflix para assinar a Folha, tal a importância do momento”, diz um no então Twitter. “Amanhã mesmo vou assinar a Folha. Façam isso. Alguém tem que continuar fazendo jornalismo de verdade neste país”, escreve outra. No dia seguinte, a Folha publica uma reportagem sobre essa campanha espontânea e lembra que poderia estar ali um movimento similar ao que aconteceu com o New York Times, um dos alvos prediletos dos ataques de Donald Trump. A receita e o número de assinaturas do jornal americano só cresceram na garupa do que especialistas da mídia batizaram de “Trump Bump”, uma onda de leitores dispostos a assinar publicações sob a mira do então presidente dos Estados Unidos em primeiro mandato. No Brasil, porém, isso não ocorreria de forma massiva.
Os editoriais da Folha apresentam a opinião do jornal sobre diferentes assuntos. São textos preparados por uma equipe dedicada a isso e que não devem ser confundidos com os produzidos pelo núcleo de reportagem.3 Todos os dias um ou dois deles são publicados no site e na p. 2 da versão impressa. Dois dias depois do Jornal Nacional, dia 31 de outubro, um editorial da Folha reagiu à ameaça feita por Bolsonaro:
Pela primeira vez na história da Nova República, o eleito para servir à Constituição no cargo mais elevado sugere descumprir, uma vez empossado, o princípio constitucional da impessoalidade na administração. Está documentada a afronta, de resto reincidente.
3 Manual da Redação, 2018.
Veículos como a Folha não deixarão de escrutinar o exercício do poder porque seus detentores de turno resolveram adotar a tática da intimidação. Jair Messias Bolsonaro não precisa aprender a lição. Basta que se acostume com o fato.
A tentativa de intimidação de Bolsonaro tinha um objetivo e um pano de fundo, como ele mesmo resumiu nessa frase ao JN: “Imprensa que se comportar dessa maneira indigna não terá recursos do governo federal”.
O objetivo, quando falou em “recursos do governo federal”, era o corte de verba publicitária, que mirava os veículos que o irritavam com reportagens críticas. A Folha e a Rede Globo eram os seus alvos principais. No caso da Folha, como era dito internamente pela direção do jornal aos seus editores, a ameaça preocupava mais do ponto de vista simbólico do que pelo prejuízo financeiro, já que esse tipo de verba federal, segundo estimativas da época, representava algo em torno de 5% da receita do jornal.
A Folha dependia de anunciantes privados e assinantes. Uma investida de Bolsonaro sobre os anunciantes, como faria sem rodeios mais à frente, seria, aí sim, motivo de preocupação.
O pano de fundo da truculência verbal de Bolsonaro foram duas reportagens da Folha que o atingiram em cheio no ano eleitoral de 2018, o que no JN ele chamou de “comportamento indigno”.
A primeira delas foi a revelação de que ele mantinha uma funcionária-fantasma em seu gabinete de deputado federal. Paga com verba pública, Walderice dos Santos da Conceição, a Wal, vendia açaí e prestava serviços particulares a Bolsonaro na Vila Histórica de Mambucaba, em Angra dos Reis (RJ), onde ele mantém uma casa de veraneio. Wal foi demitida do gabinete após a revelação da Folha, e Bolsonaro passou a dar diferentes e conflitantes versões sobre a assessora. Aquela prática revelada pelo jornal o ligava a métodos da chamada velha política no momento em que justamente fazia campanha eleitoral com promessas que iam numa linha contrária a isso. Bolsonaro se apresentava ao país como a nova política, o diferente, o antissistema.
A segunda reportagem “indigna” nas palavras dele e publicada a dez dias do segundo turno revelou que empresários estavam impulsionando de forma ilegal pelo WhatsApp disparos de mensagens em massa contra o PT. Bolsonaro passou a distorcer o conteúdo publicado pela Folha e a
dizer que o jornal o acusava de ter contratado esses serviços ilegais, o que nunca foi escrito. O candidato jogava na confusão, e sua estratégia transformaria a autora da reportagem em uma inimiga pública dele e de seus aliados mais radicais.
Bolsonaro muitas vezes gritava ao falar da Folha e de seus repórteres.
Na Redação, porém, ele nunca deveria ser visto como um adversário, mas como um homem público a ser escrutinado, com direito a um amplo contraditório, uma característica histórica do jornal. Bolsonaro não pensava dessa forma. Nem seus eleitores. Segundo pesquisas internas do jornal, muitos deles deixaram a Folha no período entre a campanha eleitoral e o início do novo governo. Cancelamentos de assinaturas ocorreram em série após reportagens críticas a ele. No lugar desses que saíam, ingressaram mais leitores dentro do espectro da esquerda e da centro-esquerda, parcelas que por sua vez haviam deixado o jornal sob críticas nos tempos de Lava Jato e impeachment de Dilma Rousseff e que, mais à frente, viriam a pressionar o jornal a pegar leve com Lula na cobertura crítica a ele na campanha eleitoral. Em novembro de 2022, o Datafolha fez uma pesquisa por telefone com leitores da Folha. Eram 28% aqueles que diziam se situar na esquerda, e 36% na centro-esquerda. Em 2018, ano da eleição de Bolsonaro, esses índices eram de 17% e 27%, respectivamente. Já os leitores de centro (16%), centro-direita (8%) e direita (7%), somados, atingiam 31% do leitorado em 2022, ante 54% em 2018, quando 28% se diziam de centro, 16% de centro-direita e 10% de direita.
No dia em que Bolsonaro vociferou contra a Folha no JN, eu estava emprestado para a editoria de Política, que à época levava o nome de “Poder”. É assim em toda eleição. Editores e repórteres de outras áreas são convocados para reforçar o time de Política. Esses reforços começam a chegar a partir de julho, até que, nos finais de semana de eleição e nos dias seguintes de cada turno, quase toda a Redação vira uma megaequipe de Política com centenas de profissionais. Cada profissional é escalado para uma função específica dentro de diferentes grupos. Há o time do live blogging (as postagens mais curtas e rápidas para uma cobertura quente), a equipe da disputa presidencial, aquela específica para as eleições a governador e uma focada só na disputa estadual de São Paulo, além daqueles distribuídos para revisar infografias, montar galerias de fotos para o site, buscar a repercussão internacional dos resultados, produzir reportagens
de rua a partir de comemoração ou confusão e, claro, cuidar da complexa edição impressa. Há ainda as equipes fixas de Foto, Infografia, Edição de Homepage, interação nas redes sociais, audiência e montagem da Primeira Página (a capa do jornal impresso).
Na época da eleição de 2018, eu era editor de Cotidiano, núcleo do jornal responsável pela cobertura de Cidades em geral, tendo dentro disso assuntos como prefeitura, educação, saúde, transportes, segurança pública e uma série de outros pepinos. Reforcei o time de Política apenas no final de semana de primeiro e segundo turnos e no dia seguinte a eles. O dia após a eleição exige uma equipe reforçada porque são produzidos os “rescaldos” das disputas. É quando explicamos melhor ao leitor os mapas dos resultados e suas consequências, além de ouvir vitoriosos e derrotados e especular sobre a formação dos novos governos e suas primeiras medidas de impacto. Um ano e meio antes, eu tinha vivido uma situação inusitada em política. Fui escalado às pressas como editor interino de Poder sem deixar de ser o titular de Cotidiano. Isso ocorreu quando estourou a maior crise do governo Temer. Às 19h30 de 17 de maio de 2017, uma quarta-feira, Lauro Jardim, colunista do jornal O Globo, soltava a bomba: “Dono da JBS grava Temer dando aval para compra de silêncio de Cunha”.4 Joesley Batista, dono da JBS, tinha gravado escondido uma conversa com o presidente e a utilizou para negociar um acordo de delação premiada com o Ministério Público. É nessa gravação em que Temer diz uma frase marcante da gestão: “É. Tem que manter isso, viu?”.
Pouco mais de meia hora depois a Folha recupera o furo de reportagem e publica a notícia, dizendo ter confirmado a gravação e atribuindo a revelação ao jornal concorrente. Às 20h03 vai ao ar: “Temer é gravado por dono do frigorífico JBS em conversa sobre Cunha”.
Aqui cabe uma explicação sobre termos que usei no parágrafo acima. “Furo” é o jargão jornalístico para reportagem exclusiva. Já “recuperar” é quando produzimos um texto a partir de uma notícia dada em primeira mão por outro veículo de imprensa. Podemos simplesmente “cozinhar” o texto do concorrente, ou seja, resumi-lo em outras palavras, ou também confirmar a informação com diferentes fontes. De um jeito ou de outro, o importante é dar o crédito ao concorrente que deu o “furo” e colocar o texto logo no ar.
4 Jardim, 2017.
Não havia tempo para lamentações ou caça às bruxas internas naquele momento em que a informação sobre a gravação de Temer veio à tona. Era assimilar o rombo e levar o quanto antes ao nosso leitor a melhor informação possível. Não havia nada mais importante no país naquele momento. Duas semanas depois, a Folha publicaria uma correção na reportagem inicial sobre o grampo de Temer. O jornal diz ter errado ao tratar como fato consumado que, na gravação, o então presidente havia relatado a compra do silêncio do deputado federal cassado Eduardo Cunha na prisão. Isso, na verdade, era uma interpretação da PGR (Procuradoria-Geral da República) usada para pedir a abertura de inquérito contra Temer. Uma reportagem da Folha anterior a esse texto na seção “Erramos” já havia tratado o mesmo áudio como inconclusivo a respeito da suposta compra do silêncio de Cunha.
A edição impressa da Folha que circulou no dia seguinte à bomba de O Globo trouxe a crise estampada em sua manchete: “Áudio de conversa de Temer e empresário encurrala governo”. Foi uma manchete forte, que vibrava em duas linhas, no alto e de lado a lado da Primeira Página. O governo Temer estava por um fio.5 A crise exigia a formação de uma editoria de emergência para dar conta do volume de informações a serem produzidas e editadas. Haveria convocação de gente de diferentes áreas. Jornalistas de Cidades, Economia, Esporte, Cultura e Internacional seriam chamados para o reforço. Antes disso, naquela manhã de quinta-feira, dia 18 de maio, havia um buraco a ser resolvido pela Secretaria de Redação, o alto-comando do jornal. O diretor da sucursal de Brasília estava de férias na África, enquanto a crise política avançava com consequências imprevisíveis no Brasil. Levaria alguns dias até a volta de Leandro Colon ao seu posto, mesmo interrompendo o descanso e correndo para Brasília. O comando do jornal não quis pagar para ver e ainda naquela manhã promoveu duas mudanças de emergência. Escalou o editor de Política, Fábio Zanini, para o comando do escritório de Brasília e me deslocou para a vaga de Zanini. Ambos de forma interina. Atuar em política não seria uma novidade para mim. Havia passado por lá anos antes como repórter e também como editor-assistente. Mas senti o baque de um peso gigante nas costas quando Roberto Dias, secretário de Redação, comunicou-me a decisão no calor da crise sob Temer. Aceitei a missão, mas, sem que ninguém percebesse, precisei de um tempo para
5 Franco, 2018.
assimilá-la. Passaria a editar o principal caderno do jornal de uma hora para outra no meio de uma crise daquelas. Andei pela Redação e busquei um rápido refúgio no banheiro. Precisava respirar um pouco e sair de lá restabelecido. Um frio subiu pela espinha assim que me tranquei em uma das cabines. Suava demais, e a camisa logo ficou molhada. Passaram-se cerca de cinco minutos, lavei o rosto e embarquei na aventura após um “vai, Corinthians” na raça e solitário diante do espelho. A emergência durou pouco. No início da semana seguinte, Colon reassumiu o comando da sucursal de Brasília após interromper as férias. Zanini voltou para a editoria de Poder, e eu, para a de Cotidiano.
Bolsonaro foi eleito em 28 de outubro de 2018. Um mês e meio depois, no dia 12 de dezembro, tocou o meu ramal na Redação. Estava em Cotidiano e, pela bina do telefone, vi que a chamada interna era do comando do jornal. A secretária na linha avisou: “O Sérgio Dávila quer falar com você. Pode descer agora?”. Em minha mesa no quarto andar da Redação, peguei um caderninho de anotações e uma caneta e segui em direção à sala dele. O percurso durou menos de um minuto. Cruzei a editoria de Cotidiano, atravessei uma porta corta-fogo, desci um lance de escadas, passei por uma porta de vidros de abertura automática e cheguei lá. “Pode entrar”, avisou a secretária.
Dávila era o editor-executivo, cargo abaixo apenas do da Direção de Redação. É quem tocava o barco no dia a dia do jornal e estava nesse cargo desde março de 2010. Ele havia chegado ao jornal em 1993 e, em 2001, cobriu como correspondente em Nova York os ataques do 11 de Setembro. Logo em seguida foi o único repórter brasileiro em Bagdá durante a Guerra do Iraque, o que resultou no livro Diário de Bagdá. Entre outros cargos antes de se tornar o chamado EE (editor-executivo), foi também editor da Ilustrada (núcleo de Cultura) e repórter especial. Dávila tinha bagagem para estar onde estava e conquistava o respeito tanto pelo conhecimento da máquina do jornal como pela elegância e educação com os subordinados. Quando era preciso ser duro e incisivo o fazia sem alterar o tom de voz ou dar soco na mesa. Muitas vezes aceitava argumentos contrários aos seus e voltava atrás quando convencido do contrário. Atuava como um diplomata no comando da Redação.
A porta da sala de Dávila era de vidro temperado. Como sempre fazia quando ali chamado, dei duas batidinhas antes de abri-la. “Oi Scola,
tudo bem? Pode sentar”, disse, do jeito informal de costume. O sorriso no rosto dele era um bom sinal, afinal ser chamado ali poderia não ser para boas notícias.
A conversa foi sem rodeios. Dávila elogiou meu trabalho nos últimos quatro anos à frente de Cotidiano e me convidou para assumir a editoria de Poder a partir de janeiro de 2019, ou seja, ao mesmo tempo que Bolsonaro assumiria o Palácio do Planalto. Agradeci a confiança e topei na hora. Eu estava em Cotidiano havia quatro anos e sabia que o ciclo ali estava se encerrando. Assim como o de Zanini, o então titular de Política, havia pouco mais de três anos no cargo e que precisava de novos ares após coordenar em sequência coberturas duras como Operação Lava Jato, impeachment de Dilma, prisão de Lula e eleições de 2018. Antes de assumir um novo posto na Redação, ele ainda tiraria um período sabático para estudar e escrever sobre o espectro da direita, que chegava ao poder no Brasil com Bolsonaro e crescia em diferentes países.
Na conversa de cinco minutos com Dávila, recebi aval dele para convidar Alencar Izidoro para seguir como meu editor-adjunto, agora em Poder. Ele pediu discrição sobre o convite, já que o comunicado oficial da mudança somente seria divulgado em alguns dias para a Redação. Como discrição não é exatamente sinônimo de segredo absoluto, falei nas horas seguintes com três pessoas já citadas aqui.
O primeiro a saber foi Colon. Uma boa relação do editor de Poder com o diretor de Brasília é meio caminho para bons resultados em política. Um não é chefe do outro e portanto precisam se respeitar dentro de um jogo interno sempre intenso. Um fio desencapado permanente entre eles pode se tornar insustentável, contaminando as equipes, desgastando o comando do jornal e, ao final, prejudicando o produto final e, na prática, o leitor. Muitas vezes a relação se torna tensa, com cutucadas na troca de e-mails e pancadas ao desligar o telefone após uma discussão mais áspera. São Paulo reclama de Brasília, e Brasília reclama de São Paulo. Colon sabia desde o dia anterior sobre a saída de Zanini, com quem tinha ótima relação, e parecia ansioso para conhecer logo o substituto. Torcia por alguém da mesma forma sintonizado com ele para amenizar esses atritos diários e inevitáveis. Telefonei para ele às 22 horas. Do outro lado da linha, quando contei a novidade, senti alguém que desabou em alívio. Nem ele nem eu precisávamos de mais problemas, afinal teríamos de encarar juntos o governo Bolsonaro.
O segundo a saber do convite foi o próprio Zanini. Após a reunião matinal dos editores, aguardei a saída dele da sala. Enquanto caminhávamos em direção a um local mais reservado da Redação já aproveitei para contar a novidade. Zanini é um amigo de longa data. Ele se animou com a notícia, abriu as portas para a transição e marcamos um almoço para os dias seguintes.
Alencar foi o terceiro a saber. Assim que terminei a conversa com Zanini, enviei logo uma mensagem para ele. “Opa. Me avise quando tiver cinco minutos tranquilos pra eu ligar aí”, escrevi. “Opa, fala, seu moço, pode me ligar agora? Estou entrando na natação com as crianças, daí saio só depois das 11h10”, respondeu Alencar, jornalista com duas particularidades folclóricas na Redação. Uma é a de se referir aos colegas como “seu moço” e “dona moça”. A outra é assinar “sts” ao final de seus e-mails, o que só anos mais tarde fui descobrir que se tratava de uma abreviatura para “satisfações”.
De um canto vazio do quinto andar, telefonei para ele. Alencar se animou com a possibilidade de mudança de ares e deu carta branca para eu tocar o plano adiante com o comando do jornal. Troquei mensagens com Dávila e dez minutos depois escrevi de novo para Alencar: “Sérgio me disse que seria ótimo ter você em Poder comigo. Falamos mais à tarde. Abraços”. Negócio fechado. O “seu moço” iria comigo para a cobertura política.
Isso foi em 13 de dezembro. Oito dias depois, às 22h55 de uma sextafeira, circulou um comunicado por e-mail a todos da Redação:
Da: Editoria-executiva
Sobre: Editorias de Poder e Mundo, Núcleo de Cidades e reportagem da Secretaria de Redação
A partir de janeiro de 2019, o jornalista Eduardo Scolese passa a exercer o cargo de editor de Poder. Na mesma data, o jornalista Daigo Oliva assume como editor de Mundo, e a jornalista Luciana Coelho, como editora do Núcleo de Cidade. O jornalista Fabio Zanini incorpora-se à equipe de repórteres da Secretaria de Redação.
Sérgio Dávila
Editor-executivo
Aceitei o convite de Dávila sem pensar duas vezes. Estava diante do maior desafio de minha carreira e me sentia pronto para isso. A própria Folha havia me preparado com seu dia a dia insano e pelas experiências
que acumulei por duas décadas no jornal. A “escola” da Redação é muitas vezes cruel, cobra o seu preço mental e físico, mas cria cascas fundamentais para a formação profissional. É preciso estar calejado para encarar pressões diárias de fora e de dentro e manter o rumo da editoria sem contaminar a equipe.
Entrei na Folha em 1998, por um caminho fora do tradicional. Era início de ano e eu acabava de me formar em jornalismo. Havia estagiado em uma rádio e em uma revista de menor expressão e buscava ainda um rumo na carreira. Trabalhava à época na Saraiva Mega Store do Shopping Eldorado, na zona oeste de São Paulo. A livraria contratava universitários como atendentes de loja, e estava nela havia um ano. Além de cursar a faculdade, ainda me dedicava à paixão pelo Corinthians. Não bastava ir a estádios em São Paulo. Precisava de mais e comecei a frequentar e militar nos Gaviões da Fiel, a maior torcida organizada do clube. Participava de caravanas para assistir a jogos no interior de São Paulo e em outros estados, tocava na bateria e atuava em diferentes núcleos internos. Integrei o departamento de bandeiras, atuei no almoxarifado e no cadastro digital dos sócios, comandei reuniões obrigatórias aos novos associados, fui eleito conselheiro e escolhido para atuar como tesoureiro da entidade. Convivia com gente de diferentes classes e cores.
A minha rotina era faculdade, livraria e torcida. E foi na sede dos Gaviões que fiz amizade com Thomas Castilho. É aí que se cruzam os caminhos de Gaviões e Folha. Thomas e seu pai, Ormuzd Alves, trabalhavam na Redação do jornal. O pai era repórter-fotográfico. O filho, um estudante que atuava como secretário da editoria de Economia. Thomas atendia telefonemas para os editores, anotava recados para os repórteres, distribuía correspondências da equipe e lançava no sistema os pagamentos dos jornalistas freelancers. Ele, porém, tinha outros sonhos. Certo dia me avisou que pediria demissão para cursar veterinária e perguntou se eu teria interesse na vaga dele. Thomas ponderou que seria um cargo na Redação, sim, mas sem nenhuma atuação como jornalista. Era a minha chance de entrar na Folha. Topei.
Comecei então como secretário, mas logo passei a colaborar para uma publicação interna do jornal chamada Folha por Folha. Era um jornal mensal editado pelo RH e que trazia as novidades da empresa, incluindo perfis de funcionários e a cobertura do campeonato interno de futebol, a Copa Folha. Lembro da conversa que tive com a então editora, Adriana
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