A revolução da longevidade

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A revolução da longevidade

Vivemos mais do que nunca.

Mas estamos preparados para isso?

A revolução da longevidade

Copyright © 2025 Alexandre Kalache

Copyright desta edição © 2025 Editora Vestígio

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direção editorial

Arnaud Vin

edição e preparação de texto

Bia Nunes de Sousa

revisão técnica

Paul Faber

revisão

Giovanna Pires

capa

Diogo Droschi

(sobre imagem do quadro “Afeto imortaliza a memória”, de Gil Sant’Anna Jr.)

diagramação

Waldênia Alvarenga

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

Kalache, Alexandre

A revolução da longevidade / Alexandre Kalache. -- 1. ed. -- São Paulo : Vestígio, 2025.

ISBN 978-65-6002-125-9

1. Envelhecimento 2. Envelhecimento - Aspectos sociais 3. Longevidade 4. Saúde pública I. Título.

25-295060.0

Índices para catálogo sistemático:

CDD-305.26

1. Longevidade : Envelhecimento : Aspectos sociais : Sociologia 305.26

Eliane de Freitas Leite - Bibliotecária - CRB 8/8415

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A tantas pessoas idosas, não só de minha família estendida, mas inúmeras outras que embalaram minha infância e juventude e de quem ouvi muitas histórias. É ouvindo histórias (e, ocasionalmente, levando pitos) que a gente aprende a crescer, se desenvolver e, finalmente, se preparar para a velhice.

A meus filhos, Julia e Pedro: com vocês aprendo a aprender, assim como com tantos outros jovens e agora também com meus netos queridos, Jasmine, Annabelle e Dylan.

A Elisa Monteiro, minha fiel escudeira, com quem trabalho lado a lado há mais de dez anos.

E a Paul Faber, companheiro de vida em mais de quarenta anos de cumplicidades, trocas, dedicação e muito afeto.

As pessoas envelhecem. Perdoam a si próprias e umas às outras e às vezes até chegam a perceber que o que têm a perdoar em si próprias e nos outros é a juventude.1

11 Introdução

Capítulo 1

18 Como tudo começou

Capítulo 2

24 Chegada a Londres

Capítulo 3

31 A revolução da longevidade

Capítulo 4

41 Repensando nosso curso de vida

Capítulo 5

55 Envelhecimento Ativo, cidadania ativa

Capítulo 6

61 Pilares do Envelhecimento Ativo: Saúde

Capítulo 7

71 Pilares do Envelhecimento Ativo: Aprendizagem ao longo da vida

Capítulo 8

78 Pilares do Envelhecimento Ativo: Participação

Capítulo 9

86 Pilares do Envelhecimento Ativo: Segurança/proteção

Capítulo 10

95 Determinantes transversais do Envelhecimento Ativo: Cultura e Gênero

Capítulo 11

103 Outros determinantes do Envelhecimento Ativo

Capítulo 12

121 Construindo resiliência em todas as idades

Capítulo 13

126 O projeto Cidades e Comunidades Amigas da Pessoa Idosa

Capítulo 14

131 Idadismo, o último grande tabu

Conclusão

139 Estamos preparados para envelhecer?

Posfácio

146 Diálogo entre gerações: aprendendo com o tempo, a memória e o envelhecer

Lucas Capretz

Sobre a capa

153 Afeto entre gerações

Gil Sant’Anna Jr.

155 Agradecimentos

156 Notas

Introdução

Quando eu era jovem, achava que ativismo era uma corrida de velocidade. Se eu corresse rápido o suficiente, tudo poderia ser consertado em um instante. Depois, um pouco mais velha, entendi que o ativismo é mais parecido com uma maratona e aprendi a dosar o ritmo. Mas agora, já bem mais velha, percebo que é, na verdade, uma corrida de revezamento.

A gente passa o bastão.

Jane Fonda, ativista e atriz estadunidense

Este livro é, antes de tudo, uma carta aberta aos brasileiros mais jovens, escrita por um brasileiro mais velho que, há cinquenta anos, acreditou enxergar um futuro e que hoje acredita vê-lo novamente. Não é uma autobiografia, apesar de trazer muito da minha trajetória pessoal. Minha vida só é relevante aqui porque se desenrolou em paralelo a algumas das transformações sociais mais profundas da história moderna, e o foco do meu trabalho nos últimos cinquenta anos tem sido justamente aprender com essas mudanças. Também não

é um manual de autoajuda sobre envelhecimento, embora traga algumas reflexões, alertas e conselhos sobre o tema que concerne a todos.

A cultura brasileira sempre vendeu ao mundo uma imagem jovem, vibrante. Por muito tempo, essa imagem refletia a nossa realidade e se tornou parte da nossa marca. Era o Brasil da minha juventude também. Ainda hoje, a alta taxa de natalidade de um passado recente sustenta uma aparência de juventude, mascarando uma mudança profunda: à medida que as mulheres brasileiras nascidas nos anos 1980 e 1990 se aproximam da menopausa com poucos ou nenhum filho, a ilusão da juventude eterna vai perdendo força.

Durante a minha vida, o número de filhos por mulher no Brasil despencou. Quando me formei em Medicina, em 1970, a taxa de fecundidade era de quase 6 filhos por mulher; não era à toa que tantos colegas optavam por pediatria e obstetrícia. Naquela época, a geriatria nem existia como especialidade. Em 1980, dez anos depois, a taxa já havia caído para 4,35. Em 1990, era 2,85. Já no início do século XXI, atingiu um nível abaixo da reposição: se um casal não tem dois filhos, ele não se reporá. E desde então permanece assim, sem reposição populacional. Atualmente a taxa está entre 1,5 e 1,7 filho por mulher.2 Portanto, há mais de 25 anos não geramos crianças suficientes para repor nossa população. Desde o início do século, o único grupo populacional que cresce no Brasil é o dos maiores de 60 anos.

Nasci na Maternidade Arnaldo de Moraes, hoje Hospital São Lucas, que já não conta com serviços de maternidade. Aliás, não há mais maternidades em Copacabana. As poucas gestantes precisam buscar outros locais para dar à luz. Não vai demorar muito para as escolas de ensino infantil do bairro também fecharem, como acontece em outros países com baixas taxas de natalidade.

Apesar do medo histórico de uma superpopulação, alimentado por visões malthusianas, a queda da natalidade indica que a população brasileira passará a encolher em menos de quinze anos. Estima-se que atinjamos o pico de cerca de 220 milhões de habitantes antes de 2040. Depois, a tendência é de queda: para menos de 200 milhões em 2070 e abaixo de 163 milhões até 2100, e tudo isso vai acontecer ainda no horizonte de vida de muitos brasileiros jovens de hoje.3

Paralelamente à queda da fecundidade, estamos vivendo cada vez mais. Quando nasci, a expectativa de vida era de 46 anos.4 Quando terminei a faculdade, já era de 57 anos. Hoje, superada a queda provocada pela Covid-19, nossa expectativa de vida gira em torno de 77 anos.5 Ou seja, desde que nasci ganhamos mais de trinta anos de vida. E faço questão de ressaltar: ganhamos mais anos de vida, não de velhice.

Nunca na história da humanidade viver muito foi uma dádiva alcançável para mais e mais pessoas. O que antes era privilégio de poucos agora é realidade para muitos. Mesmo com todas as dificuldades, o Brasil também insiste em envelhecer, e rápido; realizamos em poucas décadas o que levou quase 150 anos para acontecer nos países desenvolvidos. E ainda veremos mudanças mais profundas: o boom jovem que formava a base da nossa pirâmide etária vai atravessar a sociedade como um bezerro engolido por uma sucuri: visível de ponta a ponta. Quando os jovens de hoje forem idosos, 1 em cada 3 brasileiros terá mais de 60 anos.

Já hoje existem mais brasileiros com mais de 50 anos do que com menos de 30 anos. Em 25 anos, haverá mais pessoas acima dos 60 do que abaixo dos 25 anos; serão, no mínimo, 30% da população. Atualmente, contamos com cerca de 33 milhões de idosos.6 Em 2050, esse número mais que dobrará, saltando para 68 milhões. Não apenas o hospital

onde nasci deixou de ter uma maternidade, como também se tornou, na prática, um hospital geriátrico. Costumo brincar dizendo que há uma boa chance de que eu termine minha vida onde a comecei.

Assim como a tecnologia transforma a vida sem aviso prévio, a demografia também. Mas sempre há sinais incipientes. Desde cedo na minha vida profissional, alertei que o Brasil teria uma janela de oportunidade curta, cerca de duas décadas, para se preparar para a transição demográfica. E para que seus jovens se preparassem para a longevidade, já que viverão em uma sociedade que envelhece de forma acelerada. E mais: uma sociedade mais numerosa e mais diversa, na qual cabem várias velhices, o que significa que muitos brasileiros sobreviverão até a velhice sem condições para dela usufruir. Como uma planta que não floresce, que murcha precocemente… Como se diz em inglês, “survive but not thrive”, sobrevive, mas não prospera.

Muita gente terá acesso a recursos para envelhecer bem, mas, atenção: há um mercado ávido para suprir promessas dúbias e enganadoras para os menos avisados, as promessas fúteis de uma juventude eterna, o mercado florescente do anti-aging para os interessados e endinheirados. Creio, no entanto, que o principal fator que definirá como você vai envelhecer é a atenção que dedica aos que envelhecem ao seu redor. São eles que moldarão a sociedade em que você viverá sua velhice. O futuro do nosso envelhecimento depende do envelhecimento dos outros.

A conquista da longevidade é algo imenso, mas não se distribui de forma igual. Poucos países expõem essa desigualdade de maneira tão brutal quanto o Brasil. Envelhecer é um processo relacional. Quem viveu exposto a carências, violência, exclusão e ambientes inseguros envelhece de forma diferente. Nosso envelhecimento acelerado acontece sobre um

terreno marcado por imperfeições e erros históricos em saúde, educação, saneamento, moradia, transporte e emprego. Viver muito e sobreviver muito não são a mesma coisa.

Vivemos em um país que nos ensina que o sucesso depende apenas do nosso esforço. Se temos saúde, educação, trabalho e moradia dignos, é porque “nos esforçamos”. O que se fala menos é sobre o papel do acaso: nossa herança genética, nossa família, a segurança e os estímulos que recebemos, os exemplos que tivemos e as portas que se abriram ou se fecharam para nós. A vida se parece muito mais com uma loteria do que gostaríamos de admitir.

Subestimar a importância da sorte acaba por nos tornar egoístas. E precisamos de um “egoísmo inteligente”, como diz o médico de família e comunidade Eberhart PortocarreroGross: políticas que incentivem a solidariedade social, pois, ao beneficiar os outros, beneficiam também a nós mesmos. Se acreditamos que tudo depende apenas do mérito, acabamos culpando quem ficou para trás. Não vivemos em uma meritocracia: não partimos do mesmo ponto nem enfrentamos os mesmos obstáculos. Por isso, reafirmo: envelhecer é um processo relacional. Falar da velhice é falar de como envelhecemos. Falar de como envelhecemos é falar das experiências vividas. E falar dessas experiências é também falar de desigualdade e discriminação.

Além de razões morais e éticas, há motivos práticos para nos preocuparmos com isso. As desigualdades extremas que contaminam nosso presente também comprometem nosso futuro envelhecimento. A ciência é clara: desigualdade faz mal à saúde física e mental de todos, não só dos mais pobres e excluídos. Sociedades desiguais são mais doentes, mais inseguras, mais infelizes, são aquelas em que a ansiedade permeia todas as classes sociais. Mesmo quem tem privilégios nunca conseguirá construir muros suficientemente altos para

se isolar de doenças, violência e desesperança que nascem da desigualdade.

Nossa longevidade recém-conquistada nos dá tempo e oportunidade de reinventar a velhice. Mas com esse privilégio vêm grandes responsabilidades, para conosco e para com os outros. Envelhecer não é uma experiência apenas pessoal: é coletiva e interdependente.

Ainda me surpreendo ao encontrar brasileiros – políticos, empresários, prestadores de serviço – que não têm real consciência das mudanças profundas que já estão em curso. Muitos simplesmente resistem a tomar conhecimento. Somos um país construído sobre múltiplas bases negacionistas.

Nas décadas recentes, o envelhecimento populacional em países como o Brasil foi (e continua sendo) extraordinariamente rápido. Para dobrar sua população idosa, a França levou mais de um século;7 o Brasil fará isso em menos de 20 anos. E o futuro será dominado por países como o nosso: em 2050, quase 80% dos idosos do mundo viverão em nações em desenvolvimento.8

Mas não é só a velocidade que nos diferencia dos países desenvolvidos. Eles se tornaram ricos antes de envelhecer.

Estamos envelhecendo sem antes resolver nossas desigualdades históricas. Estamos envelhecendo na pobreza, muitas vezes na miséria. Muitos brasileiros insistem, contra todas as probabilidades, em envelhecer. Somos audaciosos, outro traço que nos caracteriza como brasileiros.

Ter uma vida longa se tornou um direito real, não mais um privilégio de poucos. Isso precisa ser celebrado e levado em conta em cada decisão que tomamos, especialmente pelos mais jovens, que almejam não só envelhecer, mas envelhecer bem.

Minha esperança é convencer um jovem leitor ou uma jovem leitora a enxergar as oportunidades e os riscos pessoais

e profissionais de envelhecer no século XXI. Se você tem hoje 20 e poucos anos e trabalhar por tanto tempo quanto eu tenho de formado como médico (55 anos), espero que ainda esteja em atividade em 2080. A vida deixou de ser uma corrida de 100 metros rasos para se tornar uma maratona. Isso requer outro tipo de preparo.

A maior conquista social dos últimos cem anos foi adicionar anos à vida. O grande desafio do século em que vivemos será adicionar vida aos anos.

Capítulo 1

Como tudo

começou

Vem, vamos embora, que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

Geraldo Vandré, músico brasileiro

Na minha infância, era comum que as mães registrassem o desenvolvimento dos filhos em um livro do bebê. Nele, anotavam visitas à maternidade, presentes recebidos e de quem, o primeiro dentinho e, com entusiasmo, quaisquer indícios de traços de personalidade. Quando eu tinha pouco mais de 5 anos, minha mãe escreveu orgulhosamente no livro: “Hoje estou muito feliz. Alexandre disse que, quando crescer, vai ser médico para cuidar dos pais quando envelhecerem”. Certamente ela estava registrando um desejo seu. É improvável que eu pudesse, naquela idade, expressar tão cedo uma vocação. Cresci, no entanto, sabendo que tinha total liberdade para escolher o que quisesse fazer da vida... desde que fosse medicina. Mesmo que a escolha tenha sido plantada por ela, acabei abraçando com entusiasmo o papel de médico da família muitos anos antes de entrar na escola médica. Aos 15 anos, eu já assumira o papel de “cuidador assistente” de minha avó materna, que morava conosco e faleceu três anos depois, vítima de um câncer implacável.

O Brasil da minha juventude era um país de altas taxas de natalidade e famílias extensas. Meus avós maternos tinham muitos irmãos e irmãs; somando tudo, eram trinta, mais os cônjuges. Ou seja, cresci rodeado de parentes idosos e, desde muito cedo, adorava estar à volta deles. Eram tantas histórias! E não era só isso: também cresci disputando espaço com uma infinidade de primos de diferentes idades. Com eles brincava e brigava, e brincando e brigando aprendemos a encontrar nosso lugar. Minhas alternativas eram, então, brincar com os primos (meninos com meninos, meninas com meninas) ou ficar ao pé dos velhos ouvindo suas histórias. Nem televisão havia, muito menos videogames e tudo que se seguiu. Havia uma troca constante de afetos e atenção com tanta gente idosa ao meu redor. Eu ficava ali, prestando atenção na conversa, até que alguém, quase sempre a tia mais velha, me enxotava: “O que você está fazendo aí, menino, isso não é conversa para criança!”. Com as histórias que eu ouvia e com os pitos ocasionais, eu também aprendia. Ao longo de minha infância, aprender era um exercício constante, incorporado nas rotinas do dia a dia, e plenamente intergeracional. Brincando e brigando, ouvindo histórias ou levando pitos, a gente aprende a crescer, a se desenvolver e a envelhecer. Nasci em uma casa confortável de classe média na zona sul do Rio de Janeiro, ainda a capital do país naquela época. Eram os anos dourados da cidade que, se não era a mais rica, era a de maior influência cultural do Brasil. A densidade demográfica já era imensa e o acesso aos mais diversos serviços ocorria, para nós, sem maiores obstáculos. Tudo isso combinado já me dava uma vantagem enorme em comparação à maioria dos brasileiros da época. Ainda assim, o Brasil no qual cresci era um país onde doenças infecciosas faziam parte do cotidiano, o capitalismo era implacável e quase não existia proteção social. Viver, para todos, era sempre um ato de equilíbrio instável.

Copacabana oferecia um ambiente cultural riquíssimo. Era sinônimo de vida efervescente, inovação musical, teatro experimental e de vanguarda. Artistas, políticos influentes, a elite econômica: o bairro fervilhava com celebridades. Na minha família, a diversidade cultural se manifestava de todos os jeitos: tradições da Igreja Ortodoxa Grega conviviam sem problema com o catolicismo; na mesa, a comida árabe se misturava com a italiana, a portuguesa e a mineira. A afrobrasilidade estava na cozinha, ainda que não me desse conta da linha rígida que nosso racismo estrutural traçava ali mesmo, em casa. E no conjunto, era uma cultura da oralidade, de contar histórias, e não faltavam histórias para contar. Como era costume nas casas de classe média da época, tínhamos empregadas domésticas que moravam conosco. Em geral, mulheres negras, solteiras, quase sempre analfabetas e vindas de comunidades rurais muito pobres de Minas Gerais. Era o começo da urbanização em massa no Brasil. Essas mulheres trouxeram para dentro de casa suas histórias de vida dura, tradições populares, cantigas, superstições e uma memória coletiva viva da África e da escravidão recém-abolida: nasci apenas 57 anos depois da Lei Áurea. Eu era fascinado por suas histórias e passava horas na cozinha ouvindo-as. Do conforto da minha casa, tive uma janela aberta para outros mundos, com histórias de beleza e crueldade que ressoam em mim até hoje.

Mesmo dentro da bolha da classe média, era impossível não ver as injustiças no Brasil. Eu amava o meu país, mas as falhas eram evidentes: a mortalidade infantil era altíssima, a expectativa de vida era baixa, e metade da população era analfabeta. Ainda no início da era das vacinas, doenças como sarampo, tuberculose e poliomielite assustavam todo mundo. Diarreias e infecções respiratórias matavam milhares e milhares de crianças. Os antibióticos estavam apenas começando

a ser descobertos: a penicilina, o primeiro deles, ainda não estava disponível no Brasil quando nasci. Mesmo no Rio de Janeiro, que era relativamente próspero, a insegurança alimentar, a falta de saneamento e o problema de moradia eram (e continuam sendo) graves.

Eu admirava o ativismo social da Igreja Católica da época e comecei a fazer trabalho voluntário com Dom Helder Câmara (1909-1999), o arcebispo progressista que tive o privilégio de conhecer e de quem fiquei amigo. No ensino médio, criei um banco de livros para estudantes pobres e um depósito de medicamentos. Para esse projeto, eu convencia médicos a doarem amostras grátis ou remédios próximos da data de validade. Copacabana era cheia de consultórios médicos, prédios inteiros. Eu ia de porta em porta e enchia sacolas dessas amostras e armazenava-as em casa para depois distribuir a estudantes de comunidades carentes, sempre mediante prescrições. Após algum tempo, consegui ter uma “sede” em uma escola pública. Hoje parece inacreditável que um profissional confiasse medicamentos a um garoto de 16 anos, mas a maioria confiava.

Entrei na faculdade de medicina no ano seguinte ao Golpe Militar de 1964, com um forte senso de propósito. A Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil, que depois virou a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tinha um corpo estudantil mais diversificado do que as universidades particulares. Desde cedo, percebi que não queria seguir uma carreira médica convencional. Meu interesse era muito maior pela anatomia social do que pela anatomia humana, mas também sabia que, para ser levado a sério, precisava me sair bem naquele ambiente acadêmico rígido e tradicional.

Na minha primeira aula de dissecação, diante do pé amputado de uma idosa, me vi especulando sobre a história de vida da dona daquele pé, muito mais interessado naquela

pessoa do que na tarefa de separar músculos, tendões, nervos e cartilagens. Na época, escrevi um conto inspirado nela. O distanciamento emocional nunca foi meu forte. Enquanto alguns colegas se realizavam naquele salão frio, de mesas de mármore e ferro cobertas de cadáveres e tanques cheios de formol, eu me convencia cada vez mais de que aquele era só um meio para um fim: o meu lugar era na saúde pública.

A saúde pública é política por natureza, pois lida com os determinantes sociais e ambientais da saúde. Até figuras gigantes da saúde brasileira, como Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, enfrentaram resistência política. Segundo a Carta de Ottawa, da Organização Mundial de Saúde (OMS), a saúde é criada e vivida pelas pessoas nos contextos em que elas vivem, aprendem, trabalham, se divertem e amam.9 Onde e como vivemos, trabalhamos, aprendemos e, principalmente, como e quem amamos, sempre foram objetos de controle. E são os corpos das mulheres, em especial das negras e pobres, que historicamente sofreram o peso maior desse controle.

Seja em temas como saúde sexual e reprodutiva, seja no que se refere à regulação ambiental, aos padrões alimentares ou à vacinação, o embate é constante, ainda mais em sociedades com baixo letramento científico.

No final dos anos 1960, à medida que a ditadura militar consolidava seu poder, a repressão e a autocensura aumentavam. Falar abertamente sobre justiça social ficou cada vez mais arriscado. Os estudantes de medicina eram apenas uma das muitas vozes de contestação, mas tínhamos visibilidade entre a classe média. Fui eleito várias vezes como representante de turma, depois diretor do diretório acadêmico da faculdade e, por fim, cofundei a Associação Nacional de Estudantes de Medicina, da qual fui o primeiro presidente.

Somos a famosa geração de 1968. Assim como em Paris, onde começaram os movimentos estudantis modernos,

nós também fomos às ruas. Era um tempo ansioso, mas cheio de esperança. Sentíamos que a história estava do nosso lado. Eu sabia que meu privilégio de classe média me dava uma proteção limitada. Minha família não era politizada, mas não proibia as minhas atividades, mesmo quando eu transformava a vasta sala da casa em “quartel-general”. Fomos uma geração que passou a juventude protestando e não nos tornamos velhinhos conformados e silenciosos. A gente não vira outra pessoa com a idade: a gente se torna ainda mais quem sempre foi.

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