

DOM ANGÉLICO
UM ABRAÇO DE QUEBRAR OS OSSOS
CAMILO VANNUCHI
DOM ANGÉLICO
UM ABRAÇO DE QUEBRAR OS OSSOS
CAMILO VANNUCHI
Copyright © 2025 Camilo Vannuchi
Copyright desta edição © 2025 Autêntica Editora
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As fotografias e os documentos aqui reproduzidos foram cedidos ou liberados por Dom Angélico, Irmã Carmem Julieta, Waldir Aparecido Augusti, Sonia Maria Bernardino, Douglas Mansur, Vera Jursys, e também obtidos junto ao acervo do Dops, no Arquivo do Estado de São Paulo, ao acervo do CEMI, na Paróquia São Francisco de Assis, de Ermelino Matarazzo, e à Fundação Perseu Abramo.
editoras responsáveis
Rejane Dias
Cecília Martins
revisão
Cecília Castro
capa
Diogo Droschi
foto de capa Fernando Cavalcanti
diagramação Waldênia Alvarenga
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil
Vannuchi, Camilo
Dom Angélico : um abraço de quebrar os ossos / Camilo Vannuchi. -- 1. ed. -- Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2025.
ISBN 978-65-5928-627-0
1. Bernardino, Angélico Sândalo, 1933-2025 2. Bispos - BrasilBiografia 3. Humanistas I. Título.
25-303986.0
CDD-282.092
Índices para catálogo sistemático: 1. Bispos : Igreja Católica : Vida e obra 282.092
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Política é igual feijão, só cozinha na panela de pressão.
Dom Angélico Sândalo Bernardino
5.
Prefácio
Ainda sou capaz de sentir a tristeza profunda que me tomou quando recebi a notícia do falecimento do meu amigo do peito, Dom Angélico Sândalo Bernardino. Mas, desde então, aos poucos, percebi que sua partida não significa ausência, ao contrário, torna-se presença ainda mais intensa, memória viva que ilumina e inspira. Nesta biografia, Camilo Vannuchi comprova isso. As páginas a seguir jogam luz sobre um homem que, para mim e muitos outros, não foi apenas o bispo e líder religioso, mas o amigo fraterno, o irmão de caminhada, o pastor que dedicou toda sua vida a viver o Evangelho na forma mais radical e coerente possível, colocando-se ao lado dos pobres, dos trabalhadores e dos excluídos.
Desde jovem, Dom Angélico encarnou as palavras de Jesus: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos cativos e a recuperação da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos” (Lc 4:18). Esta passagem bíblica, que marca o início da missão pública de Cristo, poderia muito bem ser tomada como um retrato fiel da vida de Dom Angélico.
Ainda como padre em Ribeirão Preto, ele não se intimidou diante da ditadura militar. Protegeu a Irmã Maurina, religiosa injustamente presa e torturada, e assumiu
posição firme contra a opressão. Também se destacou no campo da comunicação, como editor do jornal Diário de Notícias, em Ribeirão Preto, período em que foi colega de meu avô, José D’Aparecida Teixeira. Desde cedo aprendi, por meio da voz dos meus avós, sobre a coragem e a opção pelos pobres de Dom Angélico.
Nos anos de chumbo, tive a graça de conviver com ele. Em 1979, quando fui estudar em São Paulo, meu amigo Benedito Antônio Prezia me convidou para morar em São Miguel Paulista e participar das Comunidades Eclesiais de Base. O bispo daquela região era Dom Angélico. Sob sua orientação, experimentamos uma Igreja viva, encarnada no sofrimento e na esperança do povo. As ruas eram de terra, faltava saneamento, creches, postos de saúde, transporte público. E foi ali, inspirados por sua liderança, que surgiram movimentos de base que mudaram a vida nacional: os mutirões de moradia, o movimento de creches, a Pastoral da Criança, a Pastoral Operária e a Pastoral da Juventude. Dom Angélico não era apenas bispo, era profeta. Certo dia, após a morte de mais de vinte pessoas num acidente ferroviário na Zona Leste, deitou-se sobre a linha do trem em protesto, até que fossem instaladas cancelas para proteger a população. Sua ação lembrava a radicalidade evangélica: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15:13).
Essa Igreja progressista de São Paulo, liderada por Dom Paulo Evaristo Arns e sustentada pela coragem de Dom Angélico, formou toda uma geração de militantes políticos e sociais. A fé se fazia política, sem jamais perder a raiz evangélica. Não por acaso, atuaram em torno de Dom Angélico figuras como Paulo Freire, Frei Betto,
Paulo Vannuchi, padre Ticão, Frei Gilberto Gorgulho, Ana Flora Anderson e Renata Villas Boas. Foi nesse ambiente, permeado pela Teologia da Libertação, que me formei e aprendi que crer em Jesus Cristo significa lutar por justiça.
Nossa amizade foi intensa e constante. Muitas vezes, com Alice e os filhos, íamos visitá-lo. Ele se dizia “avô das crianças”. Sua palavra, sempre firme e ao mesmo tempo doce, nos dava força em momentos difíceis. Na ocasião da morte do Pedro, meu filho, fez uma homilia inesquecível a partir de um bilhete guardado havia vinte anos.
Dom Angélico foi também um bispo profundamente ligado à história política e social do Brasil contemporâneo.
Ao lado de Dom Paulo, celebrou a missa de sétimo dia de Alexandre Vannucchi Leme (não por acaso, primo em segundo grau do autor deste livro), participou do culto ecumênico de Vladimir Herzog e das missas de corpo presente de Manoel Fiel Filho e Santo Dias – todos mártires da luta contra a ditadura. Já em tempos recentes, esteve em momentos centrais da vida do presidente Lula: celebrou a missa de corpo presente de Dona Marisa Letícia, presidiu o ato de despedida de Lula antes de sua prisão injusta em Curitiba e, mais tarde, teve a alegria de celebrar o casamento do presidente com Janja.
Sua relação com Lula simboliza sua compreensão profunda de que fé e política não são esferas separadas, mas dimensões integradas da vida cristã. Como ensina São Tiago: “A fé, se não tiver obras, está morta” (Tg 2:17).
Para Dom Angélico, rezar e lutar eram dois verbos inseparáveis. Ele mesmo dizia: “Você rezou? Quem não reza vira bicho, quem não luta vira bicho-preguiça”. Sua mensagem era clara: a oração fortalece a luta e a luta dá sentido à oração.
Por isso, não é exagero chamá-lo de “Bispo da Esperança, da Comunicação e da Luta”. Sua vida é testemunho vivo da opção preferencial pelos pobres, como sempre recordava o Papa Francisco, mas que Dom Angélico já praticava muito antes de ser uma orientação ministerial. Seu legado é imenso. Foi uma luz presente, uma voz firme pela democracia, um construtor de caminhos de justiça e paz. Ele nos ensinou que a fé cristã não se limita ao templo, mas deve transformar a sociedade.
Por tudo isso, essa biografia se torna essencial, principalmente em tempos como os que vivemos hoje. Se, a mim e a outros que o conheceram de perto, essa leitura nos toca de maneira especial por contar histórias que vivemos e vimos de perto, para quem não o conheceu e para as próximas gerações ela se torna fonte de inspiração –através do exemplo de que fé e coragem, juntas, são instrumentos poderosos, capazes de contrapor a arbitrariedade e a injustiça.
Dom Angélico sempre presente!
Paulo Teixeira
Ministro do Desenvolvimento
Agrário e Agricultura Familiar
Fome e sede de justiça
Pouco mais de 5 mil pessoas cercavam a sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo (SP), na manhã de 7 de abril de 2018, um sábado. Naquele prédio de cinco andares, estava um ex-presidente da República aquartelado.
Duas noites haviam se passado desde que um juiz decretara a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva e o orientara a se entregar à Polícia Federal. Condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, desfecho trágico de uma trama que começaria a ser desnudada apenas um ano depois, após a divulgação das primeiras mensagens de texto trocadas entre o juiz e os promotores do Ministério Público Federal, Lula preferiu acampar no sindicato. Pediu a assessores que providenciassem uma mala de roupas e um colchonete para que pudesse passar a noite ali. Em um ou dois dias, no máximo, ele decidiria o que fazer. O clima era de tensão desde a noite de quinta-feira. Dirigentes e parlamentares do Partido dos Trabalhadores (PT) convocavam a militância lulista para ir ao sindicato. O plano era cercar o prédio até afastar o risco de confronto com a polícia. Tudo o que os apoiadores não poderiam aceitar era ver Lula algemado numa viatura. Se o sindicato estivesse lotado de trabalhadores, artistas e intelectuais, a polícia seria capaz de mobilizar a tropa de
choque? Mandaria invadir o prédio? Empregaria bombas de efeito moral e balas de borracha, assumindo o risco de uma carnificina?
Houve quem imaginasse arrastar 50 mil pessoas para o sindicato na primeira noite. Não chegaram nem 2 mil. “A gente faz a guerra com os soldados que tem”, Lula segredou ao amigo e ex-ministro Gilberto Carvalho ao observar a tropa através da janela.
As reuniões avançaram pela madrugada. Os mais otimistas diziam que Lula deveria ficar onde estava. Se entregar, segundo eles, era uma forma de admissão de culpa – pelo menos era assim que o gesto seria interpretado por muitos. Houve quem lhe sugerisse fugir, pedir asilo a alguma embaixada. Bastariam dois ou três telefonemas.
Os mais serenos, por sua vez, observaram a correlação de forças, a escalada de ódio e desinformação, a cumplicidade entre a força-tarefa da Lava Jato e os meios de comunicação de massa, e recomendaram cautela. Tudo bem, ele resiste esta noite, talvez a próxima, mas e depois?
A ordem de prisão vai evaporar? Vamos deixar a polícia invadir o prédio e pôr todo mundo em risco?
Para piorar, juristas explicavam que o desacato poderia bastar para que Lula fosse considerado foragido, motivando uma prisão preventiva e minando a possibilidade de habeas corpus.
Lula dormiu por cerca de três horas na primeira noite. Na sexta-feira, retomou a maratona de reuniões.
Atendia uma deputada, abraçava um filho, dava bronca num assessor. No fim da tarde, desenhou-se a estratégia.
O ex-presidente se entregaria à polícia, mas não no prazo de vinte e quatro horas estabelecido pelo juiz. Talvez o fizesse no sábado, quiçá no domingo. O fundamental
era transformar aquela prisão num ato político, que permitisse a Lula sair de cabeça erguida, denunciando a arbitrariedade daquela prisão e exibindo o amplo apoio que vinha recebendo de diversos setores.
– Gente, amanhã seria o aniversário da Dona Marisa –lembrou Cláudia Troiano, secretária de Lula, referindo-se à ex-primeira-dama, falecida no ano anterior.
Se um acidente vascular cerebral não tivesse abreviado sua vida, aos 66 anos, em fevereiro de 2017, Marisa Letícia Lula da Silva completaria 68 anos naquele 7 de abril. Admirada por um número crescente de militantes do partido, sobretudo por aqueles que testemunharam sua dedicação à inscrição dos primeiros filiados, ainda em 1979, e seu engajamento nas campanhas eleitorais desde 1982, Marisa merecia uma homenagem.
Pronto, estava esboçado o roteiro da prisão. Haveria uma missa em memória de Dona Marisa na manhã seguinte, ali mesmo, num palco improvisado em frente ao sindicato. Lula aproveitaria a ocasião para fazer seu último discurso. A TVT, emissora mantida pelo Sindicato dos Metalúrgicos em parceria com o Sindicato dos Bancários do Estado de São Paulo, transmitiria ao vivo e franquearia o sinal para os demais canais.
– Quem liga pro Dom Angélico?
Nos bastidores do bunker lulista e entre os jornalistas que se revezavam no local, ninguém tinha dúvida de que a missa, se houvesse, seria celebrada por Dom Angélico.
Bispo emérito de Blumenau (SC), Dom Angélico Sândalo Bernardino conhecia Lula desde o final dos anos 1970, quando coordenava a Pastoral Operária da Arquidiocese de São Paulo e era bispo-auxiliar na região episcopal de São Miguel Paulista, extremo-leste da capital.
Em São Miguel, um distrito popular e periférico de povoamento majoritariamente nordestino, residiam muitos metalúrgicos que trabalhavam em fábricas do ABC, como a Villares, a Ford e a Scania. Dom Angélico, solidário às reivindicações dos trabalhadores, conhecedor da luta de classes e crítico da ditadura militar, não demorou para estabelecer relações de amizade e confiança com o líder sindical que incendiou o ABC e chacoalhou o Brasil à frente das grandes greves de 1979 e 1980.
Foi o início de uma amizade para a vida toda. Dom Angélico casou alguns de seus filhos e batizou seus netos. Quando os médicos comunicaram ao ex-presidente a iminência da morte cerebral de Dona Marisa, Dom Angélico correu para o Hospital Sírio Libanês a fim de administrar a unção dos enfermos. Dois dias depois, esteve naquele mesmo sindicato para conduzir o velório e, em seguida, o rito da cremação. Passado um ano, Dom Angélico voltou ao sindicato para celebrar missa em intenção de Dona Marisa. Desta vez, não seria diferente:
– Diga ao meu irmão que estarei lá –, Dom Angélico respondeu para Cláudia Troiano. – Contem comigo.
No sábado, Dom Angélico chegou ao sindicato pouco antes das 10h. Reuniu-se com o ex-presidente a portas fechadas e foi econômico nas palavras: – Meu irmão, precisamos muito, muito de você. O povo pobre precisa de você. Nada de aventuras, de greve de fome. Se cuida muito. Você vai passar por tudo isso e voltar mais forte, e devolver a alegria para o povo sofrido que você tanto ama.
Prevista inicialmente para o auditório do terceiro andar, a celebração foi transferida para a área externa a fim de contemplar a multidão. Rigorosamente, não seria uma
missa, uma vez que foi realizada fora do espaço da igreja, sobre um caminhão de som, mas o que Dom Angélico chamou de celebração da palavra. E não somente uma celebração da palavra católica, mas um ato inter-religioso, com a presença de lideranças de igrejas evangélicas e judaicas, do candomblé e da umbanda.
Os relógios marcavam 11h quando Dom Angélico, todo de branco, pegou o microfone. A seu lado, figuras de proa da política nacional: a ex-presidente Dilma Rousseff, os ex-ministros Gilberto Carvalho, Celso Amorim, Fernando Haddad e Aloizio Mercadante, parlamentares como Manuela d’Ávila, Orlando Silva, Ivan Valente, Eduardo Suplicy, Gleisi Hoffmann, Paulo Pimenta, Luiz Marinho, Emídio de Souza e Lindbergh Farias, ativistas como Guilherme Boulos, do MTST, João Pedro Stédile, do MST, e Vagner Freitas, da CUT, o escritor Fernando Morais, o governador do Piauí, Wellington Dias, artistas como Osmar Prado, Ailton Graça e Tulipa Ruiz, entre outras.
Convertido em mestre de cerimônia, o bispo emérito de Blumenau declamou de memória o Sermão da Montanha, seu texto bíblico preferido: – Bem-aventurados os perseguidos por causa da Justiça, deles é o reino (de Deus). Bem-aventurados sereis quando, mentindo, disserem falsamente todo o mal contra vós...
Terminada a leitura, Dom Angélico falou de improviso. Convocou a audiência a voltar os olhos para os mais pobres. Fez um desagravo a padre Júlio Lancellotti, vigário do povo da rua em São Paulo, invariavelmente ameaçado pelos extremistas de direita, e criticou a parcialidade dos meios de comunicação.
– A grande imprensa está a serviço do poder econômico, essa que é a verdade – discursou.
A celebração continuou com mais uma leitura do Evangelho, um samba do Zeca Pagodinho, a fala de uma pastora, um Pai Nosso recitado em uníssono. Por fim, Dom Angélico retomou sua homilia.
– Lula, todos nós aqui presentes desejamos de coração que você realmente esteja em liberdade – disse, enlaçando o amigo com o braço e pousando a mão direita sobre seu ombro. – Todos nós aqui presentes temos a convicção de que o que aconteceu no Brasil foi um golpe. Só que o golpe foi 50% quando a presidenta Dilma foi afastada do cargo, e outros 50% quando impedem você de ser candidato.
A multidão respondia aos gritos: “Lula livre! Lula livre! Lula livre!”. Antes de encerrar, Dom Angélico deu a senha do que viria a seguir.
– Lula, se você se entregar, saiba que todos nós...
O povo não o deixou terminar: “Não se entrega! Não se entrega!”.
– Nenhuma prisão prende o coração, a mente e os ideais de um cidadão – o bispo emendou. – Continue a entregar a sua vida à causa da paz, que é fruto de solidariedade, de amor, de verdade, misericórdia e justiça. Que Jesus o proteja e seja a sua força, meu irmão e companheiro. Naquela tarde, após discursar por cinquenta minutos e deixar o palco nos braços do povo, Lula se apresentou na Superintendência Regional da Polícia Federal, em São Paulo, e foi conduzido de avião até a Superintendência da Polícia Federal do Paraná, em Curitiba. Aquela seria sua prisão por 580 dias, até ser solto, em 8 de novembro de 2019, beneficiado por uma decisão do Supremo Tribunal
Federal, que estabeleceu a necessidade de condenação tramitada em julgado para o cumprimento de penas de restrição de liberdade, salvo em caso de prisão cautelar ou em flagrante. Em 2021, a condenação de Lula seria anulada depois que o STF considerou o juiz parcial na condução do caso.
Dom Angélico, por sua vez, seria igualmente perseguido naqueles dias de ódio e exaltação. Comunista, vagabundo e amigo de bandido foram algumas das expressões associadas a ele após a celebração.
Dom Odilo Scherer, cardeal de São Paulo, divulgou uma nota no dia seguinte:
Sobre o ato religioso realizado ontem na frente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, a assessoria de imprensa da Arquidiocese de São Paulo esclarece que:
1. Não se tratou de missa, mas de um ato ecumênico;
2. Foi iniciativa pessoal de quem promoveu o ato;
3. Não houve participação da CNBB nem da Arquidiocese de São Paulo;
4. O ato aconteceu fora da jurisdição e responsabilidade do arcebispo e da Arquidiocese de São Paulo.
O arcebispo de São Paulo lamenta a instrumentalização política do ato religioso.
Católicos progressistas protestaram. Juristas apontaram censura e intimidação.
Nos dias que se seguiram, o bispo guardou a nota da Arquidiocese numa pasta. Também guardou algumas reportagens publicadas naqueles dias. “Bispo diz que houve golpe e pede para Lula cuidar da saúde”, era o título de uma delas, reproduzida do site da revista Veja. “‘O Brasil deve muito a esse metalúrgico’, diz Dom Angélico”, dizia a chamada da Rede Brasil Atual.
Em 2021, quando me recebeu em sua casa para uma maratona de entrevistas que se estendeu por pelo menos seis encontros, Dom Angélico tinha 88 anos e vestia máscara cirúrgica. Na tarde em que abriu o fichário e me revelou esse pequeno conjunto de memórias impressas, de um tempo marcado por arbitrariedades, discursos de ódio e desinformação, quando era chocado o ovo da serpente que logo viria a eclodir, Dom Angélico se deteve por alguns instantes sobre aqueles papéis, esboçou um sorriso contido e proferiu em voz alta o mais belo versículo do Sermão da Montanha: – Bem-aventurados os que têm fome e sede de Justiça, porque serão saciados.
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