Tarde no planeta

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Leonardo Piana

Leonardo Piana Tarde no planeta

Copyright © 2025 Leonardo Piana

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editores responsáveis

Rafaela Lamas

Schneider Carpeggiani

preparação

Sonia Junqueira

revisão

Ariadne Martins

capa

Alles Blau

imagem de capa

Marcela Novaes

diagramação

Waldênia Alvarenga

Esta obra foi vencedora do Concurso Nacional de Literatura Prêmio Cidade

Belo Horizonte – 2024.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Piana, Leonardo Tarde no planeta / Leonardo Piana. -- 1. ed. -- Belo Horizonte, MG : Autêntica Contemporânea, 2025.

ISBN 978-65-5928-621-8

1. Ficção brasileira I. Título.

25-293005.0

Índices para catálogo sistemático:

1. Ficção : Literatura brasileira B869.3

Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380

CDD-B869.3

A AUTÊNTICA CONTEMPORÂNEA É UMA EDITORA DO GRUPO AUTÊNTICA

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Para a minha mãe. Para os filhos.

Deus sabe que evitei mas agora é tarde no planeta. Lygia Fagundes Telles

Uma arma quente

No começo são os animais. As aves estão voando em bando desde a primeira luz do amanhecer, mas agora de modo diferente. Hoje as aves despertaram mais cedo, decidiram por uma migração repentina. As vacas, nos pastos que rodeiam a cidade, querem permanecer, e comem mais, muito, tudo o que podem, pressentindo o que está por vir. Mais que isso: as vacas sentem, sabem, veem o futuro. Os peixes nadam infalíveis contra a correnteza. Fugiram de casa os gatos que conseguiram, e agora caminham devagar sobre os telhados da igreja, miando indiferentes aos seus donos, ao medo dos seus donos, ao mal que causaram aos seus pequenos filhotes, atirados nas regiões mais violentas do rio escuro que corta este lugar. Minhocas e larvas avançam em direção ao centro, é possível escutar seus corpos se movendo na terra, se prestarmos bem atenção. Aqueles que podem sobem a montanha, e daqui podemos presenciar a alvorada desenhando a silhueta dos mares de morros na Serra da Mantiqueira – este pedaço de país onde caberia um pequeno novo país. Nesta cidade as pessoas dormem um sono ostensivo dentro das suas casas, em camas quentes, debaixo das suas mantas xadrezes. As pessoas não prestaram atenção nos animais, por puro alheamento e altivez se esqueceram de observá-los, de escutá-los quando quiseram lhes comunicar ferozmente a gravidade do que agora acontece. Disposto a morrer, um mosquito voando baixo acorda o menino. O bater de palmas soa como um aplauso, mas é

um golpe desvelado no ar. Na pele dele, o próprio sangue consumido pelo inseto segundos antes. O menino chora – não pelo extermínio de um serzinho como esse. Chora porque acorda.

Hoje vamos ficar com ele. Está precisando de nós.

Coração disparado sob o lençol. Andou crescendo, mas é ainda um menino – que sabe mas não disse nada a ninguém. Que não saberia dizer. No armário ao lado da cama, tudo aquilo de que precisaria para quando este dia chegasse. Ele refaz o inventário do que vai enfiar na mochila daqui a pouco: mosquetões velhos do pai, isqueiros roubados da mãe, pedaços de corda e lanternas ganhadas de aniversário, um canivete, caso precise ferir. É suficiente? tem que ser. O quarto, seu bunker. O menino olha da janela, no segundo andar deste sobrado, sempre para a mesma montanha. Agora a luz toca o rochedo que o pai e Sérgio vão escalar mais tarde, visto daqui parece minúsculo, quase indefeso. Eles vão estar bem longe de casa quando tudo começar – longe demais. Até o convidaram para ir junto, só pelo hábito do convite, mas primeiro ele não quer, e o que é pior: ele não pode. Observa o mosquito morto na palma da mão. Quero viver. Mas isso é querer muito num lugar como este.

Escalou com o pai e Sérgio poucas vezes, detestou todas. Estar no meio do mato, tendo que comer marmita fria sentado sobre uma lona, num leito de pedra, enquanto os homens se alternavam na escalada selvagem mas delicada da parede rochosa, não lhe parecia um passeio muito atraente. Não tinha

força para aquilo, de qualquer jeito, nem as mãos ressecadas para não escorregar. Gostava era de ver Sérgio escalando, descobrir músculos se contraindo nas costas, fibras de algo que ele nem sabia existir. Gotas de suor pingaram no seu rosto um dia, ele sentiu na língua o sal do esforço de um homem.

Bora, pra cima, os bramidos de incentivo do pai para o melhor amigo, o punho cerrado tocando leve o punho cerrado do outro, Boa escalada, as pontas dos dedos deles obscenamente inchadas fazendo nós complicados, Manda ver, pés de volta ao solo descalçando sapatilhas apertadas e o menino coçando milhões de picadas de insetos.

Arrasou, ele disse.

Então este café da manhã é uma despedida. Pode ser que nunca mais veja o pai e Sérgio, sente o coração apertado, quase escapando pela boca, o coração. Pensou que um adeus seria mais fácil, tinha se preparado tanto para isso, não tinha? Mas a partida sempre cava um buraco no peito, terra em volta, ele está aprendendo um adeus como já aprendeu tantas coisas.

Quais os planos pro feriado? Sérgio pergunta.

Tenho que estudar, o menino mente. Faz tempo vem se perguntando: por que estudar? Além de saber o mínimo para se proteger do futuro, qual é mesmo o sentido por trás de todos esses anos de escola se em breve tudo será resumido a coisa alguma? Qual o sentido de todo o dinheiro desperdiçado com a educação dele – até bem cara, aliás, como é que os pais davam conta de pagar? em vez de colocá-lo na escola pública onde a mãe lecionava – se muito em breve esse cataclisma tomaria conta de tudo, e então: coisa nenhuma. Ele tem pensado a respeito disso, e chega a petrificá-lo, o pensamento, mas não pode se deixar invadir pelo medo. Tenho que resistir. Até o fim.

Ele tem sido muito aplicado, a mãe diz, parece, só para dizer qualquer coisa. Esse ano vai prestar vestibular pra faculdade de arquitetura, pra treinar.

Não sabia que você queria ser arquiteto, Sérgio diz.

Não quero.

Ele não quer, mas teve que inventar um plano para o futuro. É parte do seu projeto – convencer a todos de que o futuro vai ser aquilo que podem esperar de um futuro. Luz, esperança e contentamento.

É só pra satisfazer as vontades da minha mãe, o menino brinca, forçando um sorriso para ela, que lhe mostra os dentes amarelados de volta. Essa mulher parece distante, picando frutas tropicais à mesa, e por muito tempo ele quis ter uma mãe distante desse jeito. Agora, não – agora que raízes e galhos se tocam, quer ter a mãe por perto.

O projeto de futuro dela não tinha incluído o menino. Logo que se mudaram para essa casa, duas décadas antes, aproveitando pela primeira vez o sol num dia sem compromissos, Ernesto perguntou,

Quantos filhos vamos ter?

Ela deixou escapar um riso assoprando sem querer a fumaça do cigarro no rosto dele, bruma de mistério que ela mesma produzia, enquanto bebia cerveja na lata. A pergunta deveria primeiro ser não aquela, mas apenas: Você quer? E a resposta era clara para ela.

Nós não vamos ter filhos, Diana disse, constrangida, o suor brotando das têmporas.

Você vai ter um filho comigo, ele disse. Não era um pedido, era um comando, e ele era ruim em comandar. Tenho sonhado com esse menino.

Diana sentiu um enjoo intempestivo, como só podem enjoar as palavras que não nos pertencem. Não queria ter um filho, não podia tê-lo, e ficou se perguntando em silêncio, durante a pequena eternidade em que o cigarro terminava de queimar entre seus dedos, por que nunca tinham falado disso, ainda mais se a discussão merecia, como Ernesto fez parecer, aquele desperdício de tempo – um tempo que ela não tinha para perder com aquilo, afinal precisava escrever poemas e preparar aulas de literatura, mas sobretudo

escrever poemas, que não se escrevem sozinhos, e ela não poderia escrever com um filho batendo à porta, um bebê reclamando carinho ou o leite que era dele, e não podia escrever poemas com um filho doente, não podia escrever poemas com uma criatura que dependesse dela para o resto da vida, perturbando seus sonhos e manchando seus planos, simplesmente não podia, meu bem. E quem deve ser responsável pelo seu futuro é ela, veja só,

Sou eu, não você, Diana disse em voz alta, antes de vomitar cerveja no verde do gramado, aos pés do marido.

Ela olha para o filho, dezesseis anos e ainda um menino, sentado à mesa com a família, Quer comer mais alguma coisa? eu descasco uma manga pra você, tem vontade de dizer. Olha para ele como quem faz carinho no cabelo ainda fininho de garoto que andou crescendo, que coisa, ama a criatura e se enternece com uma felicidade magnífica – não a felicidade materna, porque ela não ama o filho, já decidiu. Diana ama este ser humano já maior que ela, o serzinho que alimentou e vestiu independentemente de onde veio, que calhou de ser seu ventre, ela se enche do encanto de quem ama independentemente de condições.

Meu amor, Diana tem vontade de chamar, o amor preso dentro da boca. É muito para uma manhã de quinta-feira. O menino tem andado esquivo, mais que antes, enfurnado no quarto nos últimos dias, ela não sabe por quê, nem vai perguntar. Embora Diana queira saber de tudo, teme saber demais. Então olha para Ernesto e para Sérgio –depois desses anos todos, nem mesmo deles ela sabe o bastante. Desistiu de saber. Desistiu até de escrever poemas, que era sua maneira de conhecer o mundo. Agora, sem a escrita, Diana envelhece durante o café com uma família que também lhe pertence mas que não desejou realmente.

Chega, todos já comeram? diz se levantando para tirar a mesa. Que horas vocês dois vão sair?

Logo, Ernesto diz. Está pronto? ele se vira para Sérgio. Eu nasci pronto, meu caro, Sérgio responde piscando um olho.

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